Como parte das
atividades do projeto de extensão, inauguramos a seção de entrevistas da página
da Disciplina de Radiologia da UERJ com o primeiro convidado, o físico médico
João Lúcio Mação Junior. Ele é graduado pelo Instituto de Física da UFRJ,
especialista em radiodiagnóstico pela Associação Brasileira de Física Médica
(ABFM), supervisor de radioproteção pela Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN), mestrando em engenharia nuclear pelo Instituto Militar de Engenharia
(IME) e físico médico responsável pelo setor de radiologia do Hospital
Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(HUPE/UERJ).
Q1- Qual o
papel de um físico num serviço de radiologia?
R: Físicos
trabalham em diversas áreas. No entanto, a maior parte da sociedade imagina que
os profissionais em física atuam apenas no setor de ensino ou pesquisa,
relacionando-os à física teórica.
A física médica
é um ramo da física aplicada e entre as atribuições de um físico no setor de
radiologia estão:
- calibração e
avaliação da performance de equipamentos radiológicos;
-
desenvolvimento e implementação de programas de controle de qualidade;
- consultoria na
aquisição de equipamentos;
- manutenção dos
aparelhos;
-
desenvolvimento de procedimentos para proteção e segurança radiológica;
- atividades de
educação continuada;
- pesquisa
clínica;
Q2- O simples
trânsito das pessoas pelo serviço de radiologia implica em exposição à
radiação? Quais locais devem ter acesso restrito?
R: Não, a menos
que o técnico do equipamento esteja trabalhando de forma incorreta ou em
condições inadequadas, por exemplo: realização de exames com a porta da sala
aberta e não funcionamento da sinalização de ativação do equipamento,
localizada em cima da porta de entrada.
É importante
ressaltar que os limites de dose ambiental para as áreas ditas livres, ou seja,
todas as áreas com exceção da própria sala de exames e do comando do
equipamento, possuem o mesmo valor limite de dose de 1 mSv/ano. Isso significa
que o limite de dose para uma pessoa nos corredores do serviço de radiologia é
o mesmo limite de dose que uma pessoa receberia no centro do campo do estádio
do Maracanã.
Q3- Como é
feito o descarte dos resíduos (material de revelação de filmes, filmes velhos,
películas deixadas no serviço)?
R: O descarte
dos resíduos provenientes do processamento úmido deve ser realizado segundo
normas específicas. De acordo com a regulamentação ambiental, para esses e
outros insumos a política reversa deveria ser aplicada, isto é, os próprios
fabricantes ou seus fornecedores deveriam recolher este resíduo por eles
fornecido. Quando não é possível aplicar a política reversa, uma alternativa é
contratar empresas credenciadas pelas agências reguladoras ambientais para
executar corretamente este descarte.
Q4- O que acontece
com os equipamentos radiológicos depois que são retirados de uso? Para onde vai
essa sucata e quais os cuidados devem ser tomados?
R: Legalmente,
toda vez que um equipamento é desativado num serviço de radiologia, a
vigilância sanitária deve ser comunicada sobre a desativação e o serviço de
imagem deve tomar os seguintes cuidados:
1- retirar,
caso haja, qualquer símbolo internacional de presença da radiação
2- impedir
qualquer contato dos fios de energia do aparelho com a alimentação elétrica
3- desmontar
o aparelho
4- o
cabeçote deve ser desmontado de maneira criteriosa, de forma a evitar quebra da
ampola de vidro no interior.
5- a
ampola deve ser descartada de acordo com os mesmos cuidados empregados para o
descarte de lâmpadas.
6- após
estas etapas, o equipamento pode ser descartado como material de uso comum.
É importante
frisar que o aparelho de raio X é um equipamento que transforma energia
elétrica em radiação ionizante, ou seja, fora da tomada o equipamento de raio X
não passa de metal, vidro e óleo, sem a presença de qualquer material
radioativo.
Q5- A geração
mais nova não conhece o acidente com césio 137. O que aconteceu em Goiânia em
1987 e o que mudou de lá para cá em sua opinião?
R: A tragédia de
Goiânia foi um claro exemplo do descaso da política brasileira com o controle
de material radioativo residual, um grave episódio de contaminação radioativa
ocorrido no Brasil nos anos 80.
O episódio teve
início quando um catador de lixo encontrou um aparelho utilizado para
radioterapia. Este aparelho, ao contrário do que ocorre com os equipamentos de radiodiagnóstico, apresentava
uma fonte radioativa de césio isótopo 137. O césio 137 possui a característica
de decair, emitindo radiação ionizante constantemente até se tornar elemento
estável não radioativo. O tempo necessário para se tornar estável, varia de
elemento para elemento; no caso do césio 137 são necessários aproximadamente 30
anos para que metade da quantidade inicial do material radioativo se transforme
em outro elemento.
O catador de
lixo ao violar o capsulado em que ficava o césio, observou que este elemento
emitia uma luz azulada e ficou encantado com aquele material, acreditando ser
um presente de Deus. Isto ocasionou uma contaminação generalizada de sua
família e da cidade de Goiânia.
A CNEN mandou
examinar toda a população da região. No total, 1000 pessoas foram expostas,
muitas com contaminação corporal externa revertida a tempo. Do total de pessoas
expostas, 129 foram apenas medicadas. Entretanto, 49 foram internadas, 21 delas
em unidades de tratamento intensivo; destas, quatro faleceram.
Este foi o
segundo maior acidente radiológico no mundo, atrás somente do desastre com a
usina nuclear de Chernobyl na Ucrânia.
O episodio de
Goiânia foi um divisor de águas para a CNEN. A partir deste acidente, houve uma
revolução dentro da instituição, com respeito ao controle das ações que
envolvem elementos radioativos no Brasil. Atualmente todos os projetos de
instalações radioativas, usinas nucleares, raio X industrial e mineração de
material radioativo são submetidos à aprovação prévia pelos técnicos da CNEN.
Embora este
acidente tenha suscitado um controle maior dos elementos radioativos que
circulam pelo Brasil, ainda há muito a ser feito, principalmente com respeito
às atividades que envolvem a radiologia diagnóstica convencional. Atualmente,
todo serviço de radiologia é regulamentado exclusivamente pela vigilância
sanitária, por meio da Portaria Nº453/1998, que foi publicada em 1998. Desde
então nunca houve atualização desta portaria de forma a incluir as práticas
modernas da radiologia, como os sistemas digitais, telelaudos e sistemas
híbridos de imagem, que unem a radiologia convencional com os equipamentos de
Medicina Nuclear e Radioterapia.
Q6- Existe
uma disseminação do uso da tomografia computadorizada. Em comparação com uma
radiografia simples, qual o grau de exposição do paciente? O que esse uso
disseminado pode acarretar a longo prazo? Existem estudos sobre essa questão?
R: É preciso
tomar uma série de cuidados com respeito à utilização da tomografia
computadorizada. As vantagens do método são indiscutíveis, porém é preciso ter
em mente que um exame de tomografia pode fornecer uma dose de radiação ao
paciente que chega a ser 100 vezes maior que um raio X convencional.
O grau de
exposição do paciente pode variar com uma série de parâmetros, como a técnica
utilizada ou até mesmo a região do corpo irradiada, mas é importante deixar
claro que não existe limite de dose para exposição, ou seja, o paciente irá
receber a dose necessária para produzir um exame adequado para laudo.
Existem relatos
na literatura de alguns acidentes radiológicos provocados pelo uso
indiscriminado da tomografia, os mais comuns são escalpelação na cabeça e
eritemas na pele, provocados quando a dose de radiação atinge níveis, cujos
efeitos são conhecidos como determinísticos (o efeito induzido no paciente será
proporcional à dose recebida por ele). Os efeitos determinísticos podem variar
desde um simples eritema até uma síndrome neurológica grave.
Para doses de
radiação menores, os pacientes estão sujeitos aos chamados efeitos
estocásticos, situações em que não existe limiar de dose, ou seja, qualquer
valor de dose de radiação pode acarretar alguma doença associada. Um exemplo
clássico de efeito estocástico é o câncer.
Normalmente, não
é possível prever se uma pessoa terá ou não um câncer induzido por radiação,
pois os estudos mostram que a sensibilidade dos tecidos aos efeitos
estocásticos varia de indivíduo para indivíduo, não sendo possível realizar
associação direta da dose de radiação a uma determinada doença que o paciente
apresentou posteriormente. A única certeza que se possui com respeito aos
efeitos estocásticos é que a probabilidade de um indivíduo apresentar uma
doença induzida por radiação aumenta a partir do momento que se eleva a dose.
Desta forma, a repetição desnecessária de exames radiológicos aumenta a
probabilidade de um câncer radioinduzido.
Q7- Como
devem se portar a equipe de saúde e acompanhantes de pacientes em locais onde o
exame radiológico é feito de maneira aberta, como num CTI? É necessário haver
aquele desespero para sair da sala como se fosse explodir algo?
R: De forma
alguma as pessoas devem correr ou se desesperar quando o técnico de raio X
executar um exame num setor aberto, como uma enfermaria ou CTI. Os exames
realizados no leito são de baixa complexidade e não necessitam de grandes doses
de radiação.
Com respeito à
segurança do paciente, a legislação atual estabelece que os exames no leito,
por serem esporádicos, não necessitam de blindagem desde que a distância entre
os pacientes seja superior a dois metros.
Para a equipe de
saúde é importante deixar claro que a intensidade da radiação espalhada (fração
da radiação que se espalha para todas as direções, proveniente da incidência do
feixe de RX no paciente) decai com o inverso do quadrado da distância de
referência, ou seja, toda vez que se dobra a distância, a dose de radiação cai
quatro vezes, a partir da intensidade inicial. Portanto, uma distância superior
àquela existente entre o técnico de RX e o paciente durante a execução do
exame, já é suficiente para garantir a segurança das pessoas que estão no
setor.
Q8- Conte um
caso interessante que ilustre a ignorância da população acerca dos efeitos da
radiação ionizante.
R: Quando o
assunto é radiação, todo mundo conhece, mas poucas pessoas entendem. Um caso
muito interessante aconteceu comigo em uma clínica do interior do Rio de
Janeiro, onde um médico radiologista e responsável técnico contratou a minha
consultoria para opinar sobre a adequação da blindagem de uma sala de RX recém
construída. Ao chegar à instituição, fui apresentado ao recinto e verifiquei
que o mesmo era amplo, o equipamento de RX moderno, o comando possuía um visor
plumbífero e, estranhamente, se destacava um grande exaustor localizado acima
do
bucky vertical (local onde se realizam os exames de tórax). Ao ver
aquele exaustor, questionei o médico sobre o porquê de sua existência. O
radiologista, espantado com a minha pergunta, gesticulou com os braços e
respondeu que “obviamente era para tirar a radiação da
sala”. Fiquei impressionado com aquela resposta, chamei o médico para o canto e
expliquei que radiação não era “peido”. Esclareci que o raio X possuía as
mesmas características da luz visível, isto é, assim como a luz de um ambiente
acaba na hora em que se desliga o interruptor, o mesmo acontece com o raio X
que sai do equipamento, quando o operador tira o dedo do disparador. Ou seja,
não há acúmulo no ambiente ou em qualquer outra parte da sala.
Apesar da
obviedade da situação, havia um pânico instalado na clínica. Quando
conversei com o técnico do equipamento sobre os procedimentos de
trabalho, ele me contou que antes de realizar qualquer exame, ligava o
exaustor, disparava o equipamento e esperava por volta de quatro segundos para
dar tempo da radiação ser “sugada” pelo exaustor. Ademais, quando outros
funcionários souberam da minha presença na instituição, todos eles me
questionaram sobre o local onde estava “sendo jogada aquela radiação”, já que
na parede oposta ao exaustor existia uma área externa gramada e o refeitório da
clínica. Havia uma paranoia generalizada dentro da instituição, por conta de
uma informação equivocada cuja veracidade ninguém procurou checar.
Em se tratando
de notícia ruim, infelizmente, as pessoas são mais tendenciosas a acreditar em
uma informação dita por outra pessoa do que checar se realmente tal informação
é verídica.